quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Transação penal: sujeito ativo, procedimento, sentença, implicações legais e constitucionais


Transação penal: sujeito ativo, procedimento, sentença, implicações legais e constitucionais

Elaborado em 07/2000.


Por: Antonio José Franco de Souza Pêcego   //  Fonte: http://jus.uol.com.br/



1. Considerações preliminares

Os Juizados Especiais Criminais (art. 60 e ss., da Lei 9.099, de 26.09.1995) foram o marco na reformulação do direito penal pátrio que acompanha a evolução do Estado e das penas, inspirado na política de despenalização e descarcerização (direito penal mínimo) para os crimes de menor potencial ofensivo. Passou-se a admitir a conciliação civil (art. 74), a transação penal (art. 76), a suspensão condicional do processo (sursis processual - art. 89), a representação para os crimes de lesão corporal leve e lesão culposa (art. 88).

2. Do sujeito ativo

Desses novos institutos introduzidos pelos Juizados Especiais, interessa-nos tecer considerações neste artigo sobre a transação penal, haja vista as implicações legais e constitucionais que se afiguram.

3. Do procedimento

A posição jurídica do sujeito ativo é sui generis, pois não é a de denunciado (oferecimento da denúncia), acusado ou réu (recebimento da denúncia), suspeito, investigado ou indiciado (inquérito policial), mas tão-somente "autor do fato", denominação dada pela lei ao protagonista da lavratura do termo circunstanciado pela autoridade policial (Delegado de Polícia).

O art. 76 da Lei 9099/95 ("Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta"), permite que antes do oferecimento da denúncia, portanto, na fase administrativa ou pré-processual, o Ministério Público proponha um acordo, transacionando o direito de punir do Estado com o direito à liberdade do "autor do fato", desde que presentes os pressupostos objetivos e subjetivos previstos na lei para a oferta.

4. Da natureza jurídica da sentença e sua eficácia

Aceita a proposta pela parte e seu defensor, é submetida à apreciação judicial para o acolhimento (§§ 3º e 4º), se for o caso, e aplicação da pena restritiva de direitos ou pena pecuniária (multa), nos exatos termos do dispositivo legal acima citado, cabendo apelação dessa sentença (§ 5º do art. 76).

Sobre esse aspecto existem duas correntes, a primeira entende que não é condenatória a sentença, sendo simplesmente homologatória da transação penal (1), a segunda que é homologatória de natureza condenatória ou condenatória imprópria por aplicar a pena mas não os seus efeitos (2).

Com efeito, a sentença que aplica uma pena pecuniária (multa) ou restritiva de direitos só pode ser condenatória, pois só esta tem autoridade para impor sanções, vigorando no sistema jurídico-penal brasileiro o princípio constitucional da presunção de inocência, ou melhor, da não-culpabilidade, até o trânsito em julgado do decreto condenatório.

Assim, se se presume inocente o acusado até o trânsito em julgado da sentença condenatória, não poderia administrativamente ser simplesmente sentença homologatória de um acordo em que o "autor do fato" aceita implicitamente a culpa para a aplicação de uma pena, se não a considerarmos impropriamente condenatória. Aliás, a própria lei presume a culpa do protagonista do termo circunstanciado ao denominá-lo "autor do fato", não fazendo incidir os efeitos da sentença (reincidência, lançamento do nome no rol dos culpados, efeitos civis, maus antecedentes no caso de infração superveniente) por razões de política criminal, certamente visando a atrair o aceitante em potencial da oferta de transação penal.

Por outro lado, verifica-se que a proposta aceita é submetida à apreciação do juiz (§ 3º do art. 76), que pode acolher ou não a proposta (§ 4º do art. 76) - rejeitando-a se for ilegal, injusta ou desarrazoada - , mas, acolhendo-a, sentencia para aplicar a pena restritiva de direitos ou multa, sujeitando a sua decisão à apelação (§ 5º do art. 76), o que desnatura o caráter simplesmente homologatório do acordo, defendido por parte da doutrina e jurisprudência.

Outro ponto relevante diz respeito ao descumprimento da pena imposta, que para aqueles que vêem a sentença como simplesmente homologatória, o seu descumprimento enseja o retorno ao status anterior, "dando-se oportunidade ao Ministério Público de vir a requerer a instauração de inquérito ou propor a ação penal, ofertando denúncia" (STF-HC 79.572-GO, rel. Min. Marco Aurélio, 29.2.2000, Informativo nº 180 - Seção Transcrições), enquanto para outros que a tem como homologatória de natureza condenatória imprópria (STJ-6ª Turma, RHC 8198/GO, rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 08/06/1999, DJU 01/07/1999, p. 0211), este procedimento é obstado pela eficácia de coisa julgada material e formal gerada (3), inviabilizando a proposta de ação penal contra o "autor do fato" no caso de descumprimento, mas permitindo-se a conversão em pena privativa de liberdade (art. 181 da LEP) ou no procedimento ditado pelo art. 51 do CP (4), respectivamente, dependendo da pena aplicada (restritiva de direitos ou pecuniária).

5. Das implicações legais e constitucionais

Desse modo, é forçoso reconhecer que é ilógico que depois de apenado o "autor do fato", considerado ipso facto culpado, em caso de descumprimento das condições impostas, venha a ser submetido a inquérito policial e/ou ação penal sobre o mesmo fato-crime.

A transação penal é instituto de direito material, e é sob esta ótica que se deve estudá-lo, no qual o Estado-Administração faz uma proposta concreta para exercer o seu direito de punir em face do direito à liberdade do "autor do fato".

É sabido que vigora no direito penal contemporâneo o princípio da culpabilidade, nullum crimen sine culpa, que caracteriza a responsabilidade subjetiva, em detrimento do direito penal primitivo que adotava a responsabilidade objetiva por só interessar a simples produção do resultado.

Cezar Roberto Bitencourt (in, Novas Penas Alternativas, Ed. Saraiva, 1999, p. 38) leciona, ao resumir o princípio em exame, que "não há pena sem culpabilidade, decorrendo daí três conseqüências materiais: (a) não há responsabilidade objetiva pelo simples resultado; (b) a responsabilidade penal é do fato e não pelo autor; (c) a culpabilidade é a medida da pena".

Em sendo o crime, analiticamente, um fato típico, antijurídico e culpável (5), faz-se necessário para a imposição de pena a presença de todos esses elementos ou pressupostos do crime, a serem apurados no decorrer do devido processo legal para a correta apuração da responsabilidade subjetiva do agente, mas não administrativamente, diante tão-somente do resultado, transacionar o direito de punir com o direito à liberdade do suposto "autor do fato", para propor a aplicação de uma pena restritiva de direitos ou pecuniária (multa), sem a preocupação da busca da verdade real no decorrer do devido processo legal, aproximando temerosamente esta fase administrativa da retrógrada responsabilidade objetiva, na qual o que importa é o resultado, não se o agente atuou com dolo ou culpa.

Por outro lado, se não é acusado ou réu, mas tão-somente suposto "autor do fato", assim considerado administrativamente pela lei, não poderia ser condenado a uma pena restritiva de direitos ou pena pecuniária (multa) sem ser devidamente processado pela autoridade competente (art. 5º, LIII, CF), desrespeitando o devido processo legal (art. 5º, LIV, CF) ao não assegurar o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV, CF) ao acusado para a formação de um juízo de culpabilidade. Forçosamente, tal procedimento coloca o instituto em situação de duvidosa constitucionalidade (contra, Julio Fabbrini Mirabete) (6).

Não se pode aceitar, o que alguns autores pregam, que a maneira disciplinada pela Lei 9099/95 para a aplicação da transação penal "constitui o devido processo legal exigido pela Constituição", pois esta ao admitir a sua aplicação, certamente incumbiu o legislador infraconstitucional de dotar a lei de meios processuais condizentes com os princípios maiores que informam todo o ordenamento jurídico-penal, prevendo certamente que a transação ocorreria na via processual e não na pré-processual ou administrativa.

Informam Joel Dias Figueira Junior e Mauricio Antonio Ribeiro Lopes (7) que, à época do anteprojeto da referida lei, Nelson Nery Junior e Hermínio Marques Porto ("Juizados especiais para julgamento das infrações penais de menor potencial ofensivo", in Re Pro, nº 55, jul./set. 1989, S.Paulo, RT, pp. 105-116) indagavam "como poderia haver transação quanto à punição sem sentença condenatória anterior", sustentando que assim haveria ofensa ao disposto no art. 129, I da CF e ao devido processo legal "porque o réu seria condenado sem que tivesse sido ajuizada a ação penal pública pelo órgão competente".

6. Conclusão

Destarte, entendemos que é inconstitucional a aplicação da pena pecuniária (multa) ou pena restritiva de direitos àquele que não foi processado pela autoridade competente (Promotor de Justiça), mas tão-somente presumidamente produziu o resultado (responsabilidade objetiva), em desrespeito ao direito penal contemporâneo que adota o princípio da culpabilidade como corolário da responsabilidade subjetiva (nullum crimen sine culpa), pois o devido processo penal é o meio, o instrumento utilizado pelo Estado para concretizar o direito de punir em contraposição ao direito à liberdade, devendo o procedimento utilizado estar em sintonia com os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição de 1988.

A transação penal (art. 76 da Lei 9099/95) deveria ter sido criada para a sua propositura após o recebimento da denúncia, ou seja, durante o processo judicial, momento apropriado para o oferecimento da proposta do Estado por intermédio do Ministério Público, titular da ação penal e autoridade competente para processar o acusado.

Nos moldes propostos pela Lei dos Juizados Especiais Criminais, melhor seria se se tratasse também de um acordo, de uma transação penal, mas firmada na fase pré-processual como um "Termo de Ajustamento de Conduta", em que o Estado abriria mão de exercer o direito de punir, se durante o prazo prescricional da infração atribuída ao "autor do fato", não voltasse ele a praticar tal fato-crime ou outro qualquer, vale dizer, não voltasse a delinqüir, mantido no mais, os mesmos pressupostos exigíveis atualmente para a oferta da transação.

NOTAS:

Caso descumprisse o "Termo de Ajustamento de Conduta", o Ministério Público requisitaria a instauração de inquérito policial pelo delito praticado, ou proporia ação penal diretamente se de posse dos elementos necessários para o oferecimento da denúncia, procedimento que, ao contrário do adotado, estaria mais em sintonia com o direito penal contemporâneo.

(1) GRINOVER, Ada Pellegrini; FILHO, Gomes MagalhãesFERNANDES, Antonio SacaranceGOMES, Luiz Flávio. Juizados Especiais Criminais, Ed. RT, 2ª ed., 1997, p. 144; STF-HC 79572-GO, rel. Min. Marco Aurélio, 29.2.2000, Informativo STF nº 180.

[2] MIRABETE, Julio Fabbrini. Juizados Especiais Criminais, Ed. Atlas, 3ª ed., 1998, p. 95; CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, Ed. Saraiva, 4ª ed., 1999, p. 530; STJ-6ª Turma, RHC 8190/GO, rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 08/06/1999, DJU 01/07/1999, p. 0211; STJ-5ª Turma, RHC 8806/SP, rel. Min. Edson Vidigal, j. 23/11/1999, DJU 13/12/1999, p. 0160.

[3] STJ-5ª Turma, RESp 191719/SP, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 20/04/1999, DJU 24/05/1999, p. 190.

[4] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, Ed. Saraiva, 4ª ed., 1999, p. 530.

[5] Nesse sentido: BITENCOURT, Cezar Roberto; PRADO, Luiz Regis; TOLEDO, Francisco de Assis; TAVARES, Juarez; FRAGOSO, Heleno Cláudio; BRUNO, Aníbal; NORONHA, Magalhães; WESSELS; Baumann; contra: JESUS, Damásio Evangelista de; DELMANTO, Celso; MIRABETE, Julio Fabbrini.

[6] MIRABETE, Julio Fabbrini. Juizados Especiais Criminais, Ed. Atlas, 3ª ed., 1998, p. 96.

[7] "Comentários à Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais", Ed. RT, 1995, pp. 345/346.


Nenhum comentário:

Postar um comentário