sábado, 10 de outubro de 2009

Afeto, responsabilidade e o STF

Afeto, responsabilidade e o STF 
RODRIGO DA CUNHA PEREIRA


O STF deve decidir sobre a indenização a um filho abandonado afetivamente pelo pai, embora dele recebesse pensão alimentícia


O SUPREMO Tribunal Federal deve decidir nos próximos dias, em caráter terminativo, um importante processo que está "passando batido". Trata-se da possibilidade de indenização a um filho que foi abandonado afetivamente pelo pai, embora dele recebesse pensão alimentícia. 
A matéria chegou à corte constitucional após o Tribunal de Justiça de Minas Gerais ter condenado o pai a indenizar esse filho em 200 salários mínimos por afronta aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável. O Superior Tribunal de Justiça cassou a decisão do tribunal mineiro, sob a alegação de que a punição para um pai abandônico deve ser a destituição do poder familiar (deixar de ser pai), já que não se pode obrigar alguém a amar o próprio filho. 
Os casos julgados pelo Supremo devem ser apenas aqueles que violam a Constituição e que tenham repercussão geral. Realmente não faz sentido a mais alta corte do país ocupar-se com casos de interesse particular. Mas alguns casos particulares emprestam à coletividade uma discussão que serve de reflexão e avanço ético e jurídico, como os casos das células-tronco e do aborto anencefálico. 
Embora a premissa da afetividade seja inerente aos princípios constitucionais da dignidade humana, da solidariedade e da paternidade responsável, esse novo conceito ainda não foi bem compreendido ou aceito por algumas instâncias ou membros do Judiciário. Trata-se da aplicação direta dos princípios constitucionais, com vista ao cumprimento das responsabilidades -inclusive afetivas- com os filhos. 
No entanto, como todo pensamento inaugural, há resistências. Sobretudo porque os julgadores, embora trabalhem com imparcialidade, não são neutros, pois são humanos e, portanto, contaminados por suas próprias convicções morais, políticas e ideológicas. A argumentação contrária à indenização pelo abandono paterno diz que não se pode obrigar um pai a amar o seu filho e que isso seria a monetarização do afeto. Realmente, o amor não tem preço e não há dinheiro que pague e apague a dor sofrida pelo abandono paterno. 
Nem mesmo se pretende indenizar a dor. Sofrimento e dor fazem parte do processo de crescimento e evolução das pessoas. Não é correto buscar indenização pelas dores da vida, assim como não é possível medicalizar a vida. 
Mas, afinal, qual a importância político-jurídica e social de um caso particular como esse? É que ele traz para o centro da cena jurídica a necessidade de responsabilizar os pais pelo abandono de seus filhos. O exercício da paternidade é uma obrigação jurídica, estabelecida na Constituição, no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Código Civil. 
A indenização pelo abandono afetivo tem função reparatória e pedagógica. Se o STF disser que não há nenhuma sanção às regras e aos princípios jurídicos de que os pais são responsáveis pela criação e educação de seus filhos, e isso é dar afeto, ele estará instalando e endossando a irresponsabilidade paterna. A importância político-social e a repercussão geral estão na veiculação direta e reflexa da tragédia social de milhares de crianças abandonadas e dos vários sintomas desse abandono, tais como gravidez na adolescência e altos índices de criminalidade, entre tantos outros exemplos de disfunções familiares. 
Esses sintomas não são apenas consequência da falta de políticas públicas adequadas. Eles estão diretamente relacionados ao abandono paterno, isto é, à falta do exercício das funções paternas, o que se denomina em direito de família de "poder familiar", que por sua vez relaciona-se com a afetividade. Afeto não é apenas um sentimento. 
É também uma ação em relação aos filhos. A reparação civil ou a indenização vem exatamente contemplar aquilo que não se pode obrigar. Dizer que não cabe reparação civil pelo abandono afetivo é o mesmo que desresponsabilizar os pais pela criação e educação de seus filhos. 
Embora o caso que agoniza no STF (processo nº 567164) seja de um filho de classe média, ele diz respeito e interesse principalmente às crianças pobres. Talvez o STF não tenha dado a devida atenção e importância e não tenha entendido a repercussão geral do abandono afetivo pelos mesmos motivos que o Executivo não instala e executa políticas públicas de atenção a crianças e adolescentes. Menores não fazem parte da engrenagem política e não têm força para clamar contra o abandono. Nesse caso exemplar, cabe ao STF abrir as portas para um novo pensamento jurídico e para uma nova conduta em família, pautada pela responsabilidade, inclusive afetiva. 

RODRIGO DA CUNHA PEREIRA, 51, doutor em direito civil pela UFPR, é presidente do IBDFam (Instituto Brasileiro de Direito de Família). É advogado da causa que discute neste artigo.

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