quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Doutor de verdade é quem faz doutorado



Doutor de verdade é quem faz doutorado
Por: Marco Antônio Ribeiro Tura

No momento em que nós do Ministério Público da União nos preparamos
para atuar contra diversas instituições de ensino superior por conta
do número mínimo de mestres e doutores, eis que surge (das cinzas) a
velha arenga de que o formado em Direito é doutor.

A história, que, como boa mentira, muda a todo instante seus
elementos, volta à moda. Agora não como resultado de ato de Dona
Maria, a Pia, mas como consequência do decreto de D. Pedro I.

Fui advogado durante muitos anos antes de ingressar no Ministério
Público. Há quase 20 anos sou professor de Direito. E desde sempre
vejo "docentes" e "profissionais" venderem essa balela para os pobres
coitados dos alunos.

Quando coordenador de curso tive o desprazer de chamar a atenção de
(in) docentes que mentiam aos alunos dessa maneira. Eu lhes disse,
inclusive, que, em vez de espalharem mentiras ouvidas de outros,
melhor seria ensinarem seus alunos a escreverem, mas que essa minha
esperança não se concretizaria porque nem mesmo eles sabiam escrever.
Pois bem.

Naquela época, a história que se contava era a seguinte: Dona Maria, a
Pia, havia "baixado um alvará" pelo qual os advogados portugueses
teriam de ser tratados como doutores nas Cortes Brasileiras. Então,
por uma "lógica" das mais obtusas, todos os bacharéis do Brasil,
magicamente, passaram a ser Doutores. Não é necessária muita
inteligência para perceber os erros desse raciocínio. Mas como muita
gente pode pensar como um ex-aluno meu, melhor desenvolver o
pensamento (dizia meu jovem aluno: "o senhor é advogado; pra que fazer
doutorado de novo, professor?").

1) Desde já saibamos que Dona Maria, de Pia nada tinha. Era Louca
mesmo! E assim era chamada pelo Povo: Dona Maria, a Louca.

2) Em seguida, tenhamos claro que o tão falado alvará jamais existiu.
Em 2000, o Senado Federal presenteou-me com mídias digitais contendo a
coleção completa dos atos normativos desde a Colônia (mais de
quinhentos anos de história normativa). Não se encontra nada sobre
advogados, bacharéis, dona Maria, etc. Para quem quiser, a consulta
hoje pode ser feita pela Internet.

3) Mas digamos que o tal alvará existisse e que dona Maria não fosse
tão louca assim e que o povo fosse simplesmente maledicente. Prestem
atenção no que era divulgado: os advogados portugueses deveriam ser
tratados como doutores perante as Cortes Brasileiras. Advogados e não
quaisquer bacharéis. Portugueses e não quaisquer nacionais. Nas cortes
brasileiras e só!

Se você, portanto, fosse um advogado português em Portugal não seria
tratado assim. Se fosse um bacharel (advogado não inscrito no setor
competente), ou fosse um juiz ou membro do Ministério Público você não
poderia ser tratado assim. E não seria mesmo. Pois os membros da
Magistratura e do Ministério Público tinham e têm o tratamento de
Excelência (o que muita gente não consegue aprender de jeito nenhum).
Os delegados e advogados públicos e privados têm o tratamento de
Senhoria. E bacharel, por seu turno, é bacharel; e ponto final.

4) Continuemos. Leiam a Constituição de 1824 e verão que não há
"alvará" como ato normativo. E ainda que houvesse, não teria sentido
que alguém, com suas capacidades mentais reduzidas (a Pia Senhora),
pudesse editar ato jurídico válido. Para piorar: ainda que existisse,
com os limites postos ou não, com o advento da República cairiam todos
os modos de tratamento em desacordo com o princípio republicano da
vedação do privilégio de casta. Na República vale o mérito. E assim
ocorreu com muitos tratamentos de natureza nobiliárquica sem qualquer
valor a não ser o valor pessoal (como o brasão de nobreza de minha
família italiana que guardo por mero capricho porque nada vale além de
um cafezinho e isto se somarmos mais dois reais).

A coisa foi tão longe à época que fiz questão de provocar meus
adversários insistentemente até que a Ordem dos Advogados do Brasil se
pronunciou diversas vezes sobre o tema e encerrou o assunto.

Agora retorna a historieta com ares de renovação, mas com as velhas
mentiras de sempre. Agora o ato é um "decreto". E o "culpado" é Dom
Pedro I (IV em Portugal). Mas o enredo é idêntico. E as palavras se
aplicam a ele com perfeição.

Vamos enterrar tudo isso com um só golpe?!

A Lei de 11 de agosto de 1827, responsável pela criação dos cursos
jurídicos no Brasil, em seu 9ª artigo diz com todas as letras: "Os que
frequentarem os cinco anos de qualquer dos cursos, com aprovação,
conseguirão o grau de bacharéis formados. Haverá também o grau de
Doutor, que será conferido àqueles que se habilitarem com os
requisitos que se especificarem nos Estatutos que devem formar-se, e
só os que o obtiverem poderão ser escolhidos para Lentes".

Traduzindo o óbvio. A) Conclusão do curso de cinco anos: Bacharel. B)
Cumprimento dos requisitos especificados nos Estatutos: Doutor. C)
Obtenção do título de Doutor: candidatura a Lente (hoje Livre-Docente,
pré-requisito para ser Professor Titular). Entendamos de vez: os
Estatutos são das respectivas Faculdades de Direito existentes
naqueles tempos (São Paulo, Olinda e Recife). A Ordem dos Advogados do
Brasil só veio a existir com seus Estatutos (que não são acadêmicos)
nos anos trinta.

Senhores.

Doutor é apenas quem faz doutorado. E isso vale também para médicos,
dentistas, etc, etc. A tradição faz com que nos chamemos de doutores.
Mas isso não torna doutor nenhum médico, dentista, veterinário e, mui
especialmente, advogados. Falo com sossego.

Afinal, após o meu mestrado, fui aprovado mais de quatro vezes em
concursos no Brasil e na Europa e defendi minha tese de Doutorado em
Direito Internacional e Integração Econômica na Universidade do Estado
do Rio de Janeiro.

Aliás, disse eu: tese de Doutorado!.Esse nome não se aplica aos
trabalhos de graduação, de especialização e de mestrado. E nenhuma
peça judicial pode ser chamada de tese, com decência e honestidade.

Escrevi mais de 300 artigos, pareceres (não simples cotas), ensaios e
livros. Uma verificação no site eletrônico do Conselho Nacional de
Pesquisa (CNPq) pode compravar o que digo. Tudo devidamente publicado
no Brasil, na Dinamarca, na Alemanha, na Itália, na França, Suécia,
México. Não chamo nenhum destes trabalhos de tese, a não ser minha
sofrida tese de Doutorado.

Após anos como advogado, eleito para o Instituto dos Advogados
Brasileiros (poucos são), tendo ocupado comissões como a de Reforma do
Poder Judiciário e de Direito Comunitário e após presidir a Associação
Americana de Juristas, resolvi ingressar no Ministério Público da
União para atuar especialmente junto à proteção dos Direitos
Fundamentais dos Trabalhadores públicos e privados e na defesa dos
interesses de toda a Sociedade. E assim o fiz: passei em quarto lugar
nacional, terceiro lugar para a região Sul/Sudeste e em primeiro lugar
no Estado de São Paulo. Após rápida passagem por Campinas, insisti com
o Procurador-Geral em Brasília e fiz questão de vir para Mogi das
Cruzes.

Em nossa Procuradoria, Doutor é só quem tem título acadêmico. Lá está
estampado na parede para todos verem.

E não teve ninguém que reclamasse; porque, aliás, como disse linhas
acima, foi a própria Ordem dos Advogados do Brasil quem assim
determinou, conforme as decisões seguintes do Tribunal de Ética e
Disciplina: Processos: E-3.652/2008; E-3.221/2005; E-2.573/02;
E-2067/99; E-1.815/98.

Em resumo, dizem as decisões acima: não pode e não deve exigir o
tratamento de Doutor ou apresentar-se como tal aquele que não possua
titulação acadêmica para tanto.

Como eu costumo matar a cobra e matar bem matada, segue endereço
oficial na Internet para consulta sobre a Lei Imperial:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_63/Lei_1827.htm

Os profissionais, sejam quais forem, têm de ser respeitados pelo que
fazem de bom e não arrogar para si tratamento ao qual não façam jus.
Isso vale para todos. Mas para os profissionais do Direito é mais
séria a recomendação.

Afinal, cumprir a lei e concretizar o Direito é nossa função.
Respeitemos a lei e o Direito, portanto; estudemos e, aí assim,
exijamos o tratamento que conquistarmos. Mas só então.


*Marco Antônio Ribeiro Tura é jurista, membro vitalício do Ministério
Público da União, doutor em Direito Internacional e Integração
Econômica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre em
Direito Público e Ciência Política pela Universidade Federal de Santa
Catarina, professor visitante da Universidade de São Paulo, ex-
presidente da Associação Americana de Juristas, ex-titular do
Instituto dos Advogados Brasileiros e ex-titular da Comissão de
Reforma do Poder Judiciário e da Ordem dos Advogados do Brasil

Fonte: Conjur

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