terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

A cessão de direitos hereditários no novo Código Civil


A cessão de direitos hereditários no novo Código Civil

Elaborado em 05.2003.

Ricardo Guimarães Kollet

tabelião e registrador civil em Porto Alegre (RS)


A cessão de direitos hereditários, contrato através do qual opera-se a transmissão de direitos provenientes de sucessão, enquanto não dados a partilha que declarará a partição e deferimento dos bens da herança entre os herdeiros (legítimos ou testamentários) e aos cessionários, não encontrava dispositivo específico que a contemplasse diretamente no Código Civil de 1916. A referência à cessão encontrava guarida no artigo no artigo 1.078, do CCB/1916, segundo o qual aplicam-se as disposições deste título (cessão de crédito) as disposições sobre a cessão de outros direitos para os quais não haja modo especial de transferência. Outra menção ao instituto, existente no diploma privado anterior, podia ser verificada no artigo 1.582 que preceituava a não presunção de aceitação da herança se procedida a cessão gratuita aos demais herdeiros. A cessão de direitos hereditários foi instrumento largamente utilizado no direito brasileiro o que, a nosso ver, motivou o legislador de 2002 em contemplá-la nos dispositivos criados.

O Código Civil atual prevê, em seu artigo 1.793, que "o direito a sucessão aberta, bem como o quinhão de que disponha o co-herdeiro, pode ser objeto de cessão por escritura pública". O novo preceito, que passa a integrar o ordenamento civil pátrio, nos informa dois requisitos básicos para a cessão, a saber: a) somente após a abertura da sucessão, ou seja, após a morte do autor da herança, poderemos falar em cessão dos respectivos direitos posto que, mesmo no ordenamento antigo (art. 1.089), quanto no atual (art. 426) a herança de pessoa viva não podia e continua não podendo ser objeto de contrato. Com a abertura da sucessão a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários, permanecendo, até o partilhamento final, o estado de indivisão, ou seja, na expressão do Código civil, "como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros" (art. 1.791). b) a cessão deverá revestir-se de forma pública, ou seja, deverá ser feitas em notas do Tabelião (por escritura pública).

Duas formas de cessão de direitos hereditários devem ser anotadas para podermos pontuar as questões sobre os efeitos que devam produzir: uma a título universal, quando um ou mais de um dos co-herdeiros cede ou cedem, no todo ou em parte, seu quinhão hereditário, devendo a cessão incidir sobre a totalidade da herança; outra a título singular, ou seja, sobre bem certo e determinado da herança, quando a sub-rogação do cessionário relaciona-se tão somente ao particularmente negociado.

A questão da possibilidade de cessão, por parte de co-herdeiro, de seu quinhão hereditário, a título universal, seja no todo ou em parte, nos parece repousar em águas mansas. Somente deve-se atentar para o direito de preferência dos outros co-herdeiros insculpido no artigo 1.795 do Código. Conforme as palavras de Silvio Rodrigues "O condômino pode alienar a terceiro sua parte indivisa, ou seja, a fração ideal de que é titular; pode mesmo alienar uma parte alíquota de seu quinhão..." (1). Segundo César Fiuza "cessão de herança é a alienação gratuita ou onerosa da herança a terceiro, estranho ou não ao inventário". Segundo o mesmo autor "A cessão pode ser total ou parcial quando envolver todo o quinhão do cedente ou parte dele" (2). Neste caso, o cessionário receberá a herança assim como se encontra, ou seja, em estado de indivisibilidade.

A grande questão que se arvora diz respeito à cessão, por co-herdeiro, de bem da herança, considerado singularmente, ou seja, sobre um bem certo e determinado da herança. O Código sanciona com a inficácia da mesma em dois casos: quando feita por co-herdeiro sobre bem da herança considerado singularmente (parágrafo segundo) e sem prévia autorização do juiz da sucessão, pendente a indivisibilidade (parágrafo segundo).

Quanto a resolução da primeira questão nos parece ser no sentido de que a cessão de direitos, a título singular, sobre imóvel certo e determinado, antes de ajuizada a ação de inventário ou arrolamento, não poderá ser feita pelo co-herdeiro isoladamente. Entretanto, se feita pelo conjunto de todos os herdeiros com direito àquela herança parece-nos que não será afetada pela ineficácia pois esta terá de ser alegada pela parte prejudicada. Tendo todos os herdeiros participado do ato de cessão, não haveria interessado legítimo para insurgir-se contra o ato. Poderiam, ainda, a nosso ver, os demais co-herdeiros participarem do ato para expressar sua concordância, mesmo que não transfiram seus quinhões. Nesse caso a parte cedida, matematicamente, será abatida da quota do herdeiro cedente, quando da partilha respectiva.

Nesse sentido, continua a lição de Silvio Rodrigues, acima citada, a partir da interrupção: "...mas não pode, jamais, alienar um bem que componha o acervo patrimonial ou hereditário, pois este bem é insuscetível de ser alienado por um dos condôminos sem o assentimento dos demais (o grifo é nosso). Na hipótese de todos os co-proprietários desejarem fazer a venda de um bem, é a comunidade que procede à alienação, e o preço recebido, até ser dividido entre os interessados, se sub-roga no lugar da coisa vendida, pelo princípio de sub-rogação real" (3). Eduardo de Oliveira Leite, em seus comentários ao Novo Código Civil, ao pontualizar a questão diz que o co-herdeiro fica impedido de "dispor do bem sem o assentimento dos demais" (4).

Entretanto, cabe ao intérprete perquirir: como o Tabelião vai verificar se todos os herdeiros estão presentes? A resposta parece bastante singela na perspectiva notarial visto que os atos que aportam ao serviço de notas são basicamente declarações de vontade. Sendo assim, a declaração dos cedentes no sentido de que compõem todo o polo ativo da relação sucessória, com a concordância do cessionário, que assumirá os riscos por eventual ineficácia do ato, apresenta-se como satisfatória. Deverão declarar também na escritura que não foi ajuizada a respectiva ação de inventário ou arrolamento, quando será necessária a autorização judicial conforme declinaremos em momento oportuno.

Corroborando os argumentos até aqui delineados, sobre a possibilidade da cessão de direitos hereditários anteriormente à propositura da ação de inventário ou arrolamento, podemos destacar a possibilidade do cessionário, subsidiariamente, proceder a abertura da mesma, conforme a dicção do inciso V, do artigo 988 do CPC (legitimidade concorrente). O cessionário somente poderá iniciar a ação portando o respectivo instrumento de cessão, habilitando-se na forma processual cabível.

No que diz respeito à cessão, a título singular, por qualquer herdeiro, pendente a indivisibilidade, quando já existe ação judicial, nos parece que deva ser aplicado o parágrafo segundo do artigo 1.793, devendo haver prévia autorização do juiz da sucessão. Se admitirmos que a cessão poderá ser feita mesmo anteriormente à propositura da ação, a autorização judicial a que se refere o dispositivo em tela somente terá cabimento quando já estiver tramitando o feito.

Entretanto, embora as interpretações acima, temos que noticiar uma decisão inédita e isolada num processo de arrolamento onde foi habilitado cessionário de direito sobre imóvel certo e determinado, havido conforme escritura pública de cessão de direitos hereditários, sobre parte da herança, a saber, um imóvel (certo e determinado), a qual foi outorgada pelas únicas partes integrantes do polo ativo da relação jurídica (viúva-meeira e herdeira-filha). Abstraindo-nos aqui de comentar a impropriedade da cessão dos direitos de meação (posto que não foi elemento norteador da decisão), relatamos tão somente o pronunciamento do judiciário, através de despacho, nos seguintes termos: "a partilha contraria as disposições do artigo 1793 do NCCB (a cessão de direitos foi formalizada antes da partilha) (o grifo é nosso). Oportunizo, pois, o prazo de 10 dias para adequação da mesma, a fim de viabilizar a homologação nos devidos termos". A manifestação nos parece infundada posto que, após a partilha, o ato a ser feito somente poderá ser de doação ou compra e venda, nunca de cessão. Por outro lado nem o artigo 1793 nem seus parágrafos referem-se ao momento em que deve ser feita a cessão. A doutrina de Venosa é adequada quando sublinha: "Só existe cessão antes da partilha. Após, a alienação é de bens do herdeiro. O cessionário participa do processo de inventário, pois se sub-roga na posição do cedente" (5). Ao nosso ver a decisão deverá ser reformada.

A questão não reside, portanto, na feitura da cessão em momento anterior ou posterior a partilha, mas sim se antes ou depois de ajuizada a ação de inventário ou arrolamento. Se posterior, demanda a autorização do juiz da sucessão; se anterior, deverá ser feita por todos os co-herdeiros, ou por parte deles com a anuência dos demais, adotando-se as cautelas já mencionadas.

A sanção cometida ao negócio jurídico que afrontar a determinação legal (feita por co-herdeiro ou sem a autorização judicial) é de ineficácia. No ordenamento civil anterior (Código de 1916) entendia-se, pela fala do artigo 145, que seria nulo o ato jurídico "quando a lei lhe negar efeito" (inciso V). Entretanto, o artigo 166 do Código Civil de 2002 não reproduz esta regra. A regra posta diz que é nulo o ato jurídico quando "a lei proibir-lhe a prática, sem cominar sanção" (inciso VII). No caso em tela a lei ao proibir a prática da cessão por co-herdeiro de bem considerado singularmente ou sem prévia autorização judicial, sanciona o descumprimento com a ineficácia. A ineficácia dos negócios jurídicos resulta de sua nulidade ou de sua anulabilidade. A questão é saber se o ato praticado em desacordo com o preceito é nulo ou anulável. (sublinhamos).

Se para o ato jurídico ser nulo é necessário que não haja outra cominação e tendo a lei sancionado o descumprimento com a ineficácia, temos que, por exclusão, o caso seria de anulabilidade. Por outro lado, se atentarmos para a lição de Venosa que leciona repousar "a nulidade sempre em causas de ordem pública, enquanto a anulabilidade tem em vista mais acentuadamente o interesse privado" (6) podemos colocar a questão da ineficácia da cessão, nos casos mencionados nos parágrafos segundo e terceiro, do artigo 1793, do Código civil de 2002, como sendo de anulabilidade visto que os interesses postos em questão são de natureza privada podendo, a qualquer tempo, os demais co-herdeiros ou mesmo o juiz da sucessão convalidar o ato feito em desacordo com a lei, adjudicando o bem considerado singularmente ao cessionário.

Mesmo que pudessemos colocar os atos referidos no plano da nulidade esta seria relativa, a qual, na lição de Clóvis Beviláqua, "refere-se a negócios que se acham inquinados de vício capaz de lhes determinar a ineficácia, mas que poderá ser eliminado, restabelecendo-se a sua normalidade". A cessão feita em desacordo com a lei pode, efetivamente, dentro do processo de inventário, ser contemplada pelos demais herdeiros quando da partilha, adjudicando-se, como já foi dito, o bem, em favor do cessionário, com a homologação judicial, restando ratificada e produzindo os efeitos queridos pelos agentes.

Entretanto, se considerarmos que inexiste defeito na manifestação de vontade, o ato não será nulo nem anulável, posto que somente no plano da eficácia será atacado. Teremos, então, um ato jurídico existente e válido, mas ineficaz. Nesse passo, mesmo sendo lavrado o ato contrariamente ao preceito legal, se os demais herdeiros quando da partilha houverem por bem contemplar o cessionário com o imóvel havido particularmente, a cessão produzirá plenamente seus efeitos.


Notas

1.Rodrigues, Sillvio. Direito Civil. V. 6.

2.Fiúza, Cezar. Direito Civil, Curso completo. De acordo com o Código civil de 2002. Belo Horizonte, Del Rey, 2003, p. 856.

3.Ob. Cit., p. 27

4.Leite, Eduardo de Oliveira. Comentários ao Novo Código Civil. Do direito das Sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 81.

5.Venosa, Silvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões. 3 ed. – São Paulo: Atlas, 2003, p. 42

6.Venosa, Silvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 3 ed. – São Paulo: Atlas, 2003, p. 573.

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