quinta-feira, 15 de abril de 2010

PRISÃO EM FLAGRANTE - ASPECTOS CONSTITUCIONAIS RELEVANTES

PRISÃO EM FLAGRANTE - ASPECTOS CONSTITUCIONAIS RELEVANTES

O presente artigo tem por objetivo analisar os aspectos constitucionais relevantes da prisão em flagrante em consonância coma doutrina processual penal, abordando as funções teóricas além da prática processual penal inserida no ordenamento jurídico.

A Prisão em flagrante é a modalidade de prisão cautelar, de natureza administrativa, realizada no momento em que se desenvolve ou termina de se concluir a infração penal. A Constituição Federal, em seu art. 5º,LXI, autoriza essa modalidade de custódia, sem a expedição de mandado de prisão pela autoridade judiciária, apresentando-se desta forma, o seu caráter administrativo.

A Prisão em Flagrante, possui como natureza jurídica ser uma medida cautelar de segregação provisória do autor da infração penal, exigindo apenas a aparência da tipicidade, desconsiderando qualquer valoração sobre a ilicitude e a culpabilidade, que são requisitos para a configuração do crime. Inicialmente, possui o auto de prisão em flagrante, seu caráter administrativo, pois, formalizador da detenção, é realizado pela Polícia Judiciária, tornando-se jurisdicional quando o magistrado ao tomar conhecimento e considerando ilegal mantém a refrida prisão.

Com o advento da Lei nº11.449/2007, alterou-se o art. 306 do Código de Processo Penal, que passou avigorar com a seguinte redação:

"Art. 306. A prisão de qualquer pessoa e local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou a pessoa por ele indicada.

§1º. Dentro em 24h(vinte e quatro horas) depois da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defesnsoria Pública.

§2º. No mesmo prazo, será entregue ao preso, mediante recibo, a nota de culpa, assinada pela autoridade, com o motivo da prisão, o nome do condutor e o das testemunhas."

Daí questiona-se o periculum in mora, típico das medidas cautelares, é ele presumido quando se tratar de infração em pleno deenvolvimento, pois ferida está sendo a ordem pública e as leis, na hipótese do magistrado manter a prisão considerada ilegal cabendo a impetração de habeas corpus.  

            A Carta da República de 1988 estampa no inciso LVII de seu artigo 5º que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Este dispositivo consagra o axioma de que a prisão-pena (na verdade, não só a prisão mas qualquer pena), que é aquela egressa da condenação pela prática de alguma infração penal, somente poderá ser imposta após o trânsito em julgado da sentença condenatória. Até aí o indivíduo é presumido (presunção relativa) inocente e por isso a ele não pode ser imposta execução de pena. Coadunam com esse entendimento ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO ("Presunção de Inocência e Prisão Cautelar", Saraiva, São Paulo, 1991, p. 43) e LUIZ FLÁVIO GOMES ("Sobre o Conteúdo Processual Tridimensional de Princípio da Presunção de Inocência" in "Estudos de Direito Penal e  Processual Penal", 1.ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1999, p. 115). 

Já o inciso LXI, também do art. 5º da Constituição, por seu turno, diz que, ressalvado o âmbito militar, "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade competente". Cuida este inciso da prisão não advinda da aplicação de uma pena, que é denominada pela doutrina de prisão processual. Tem-se, portanto, duas sistemáticas constitucionais de prisão: a prisão-pena regida pelo inciso LVII e que somente pode vir após a sentença condenatória definitiva, e a prisãoprocessual, disciplinada preponderantemente pelo inciso LXI. 

Merece ser frisado, porém, que a prisão processual se aplicam também alguns outros dispositivos constitucionais, a saber, os incisos LIV, LVII, LXV e LXVI, os quais, quando interpretados em cotejo, levam a inafastável conclusão de que no regime da Constituição de 1988 a regra vigente é que os indivíduos estejam e permaneçam em liberdade até que eventualmente lhes sobrevenha uma prisão-pena. Esta afirmação contudo, não obsta a que lhes seja retirada sua liberdade antes da prisão-pena. O que se obtém da análise dos dispositivos citados é que a liberdade somente pode ser afastada via prisão processual em casos excepcionais devidamente previstos em leis, leis estas que, por óbvio, precisam obedecer às normas constitucionais. Como a regra é a liberdade salvo a aplicação de prisão-pena, a incidência da prisão processual apenas deve ter lugar quando se fizer imprescindível, já que é excepcional (exceção à regra). Neste sentido, FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO ("Processo Penal", v.3., 20. ed., São Paulo, Saraiva, 1998, p. 451). 

Lendo-se o inciso LXI já transcrito, se constata que a única hipótese possível de prisão processual sem ordem de autoridade judiciária competente é a prisãoem flagrante. Justifica-se a prisãoem flagrante porque ela advém de um contexto em que há intensa evidência probatória em relação tanto à materialidade quanto à autoria, daí resultando que ela permite a colheita, de imediato, de elementos comprobatórios do ilícito, dado que explica e justifica a desnecessidade de prévia autorização por autoridade judiciária. 

Nada obstante seja possível a prisão sem a prévia ordem judicial, exige o artigo 5º, LXII, da Lei Maior que seja o flagrante"imediatamente" comunicado ao juiz competente. Tal exigência se dá exatamente porque a regra constitucional é a liberdade, nos termos do que se exibiu. Assim, quando tal regra é quebrada sem autorização judicial, em razão de uma prisão em flagrante, é preciso que o judiciário se manifeste sobre o caso e, realizando um controle posterior, afirme se tal prisão – exceção à regra – é de fato legítima e se precisa subsistir. 

Retoma-se, aqui, a questão da necessidade. A prisão cautelar, excepcional que é, tem nítido caráter cautelar, porquanto somente se imprescindível para acautelar um processo penal é que pode ser deflagrada, já que a regra é a liberdade. Como se sabe, toda medida cautelar exige os requisitos da fumaça do bom direito e do perigo na demora. Se estiverem presentes simultânea e cumulativamente estes dois requisitos, qualquer medida cautelar será arbitrária por ausência de lastro jurídico. 

No específico âmbito do Direito Processual Penal, o maior referencial que se tem para aferir a questão da necessidade da aplicação de alguma medida cautelar constritiva da liberdade é o art. 312 do Código de Processo Penal (CPP). Apreciando-se este dispositivo se conclui que o fumus boni iuris está presente quando houver materialidade comprovada e indícios suficientes de autoria. Superada afirmativamente esta etapa, o mesmo artigo destaca que somente se necessário para garantia da ordem pública ou econômica, para aplicação da lei penal ou por conveniência da instrução criminal é que se pode entender configurado o periculum in mora. Ou, mais especificamente: somente se a liberdade de alguém trouxer perigo a uma dessas situações é que se verá presente aquilo que se chama de periculum libertatis

No caso da prisão em flagrante, é ela imposta em razão de alguém haver sido pilhado praticando uma infração penal. Em razão disso, prescinde-se, em um primeiro momento, da análise da ocorrência ou não dos requisitos imperiosos à prisão processual. Todavia, comunicado o flagrante, ao teor da lei 11.449/2007, o magistrado tem de averiguar se citados requisitos estão presentes. Em caso positivo, aquela cautela imposta sem sua autorização será mantida, agora com apoio em ordem sua. Se não estiverem presentes, a prisão processual excepcionalmente aplicada terá de ser afastada, em face de inexistir alicerce jurídico para que subsista. (sobre o tema, ver ANTÔNIO ESCARANCE FERNANDES, "Processo Penal Constitucional", 2.ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000, p. 292). 

É precisamente isto que dispõe o parágrafo único do art. 310 do CPP, ao estatuir que quando o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva, concederá ao réu liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação. Por este dispositivo, se, em caso de prisão em flagrante, não se evidenciarem os elementos que autorizam a prisão preventiva, será concedida liberdade provisória. Lavra-se o auto de prisão em flagrante, colhendo-se o que for necessário à prova da materialidade e autoria da infração e, feito isto, a prisão só será mantida pela autoridade judicial se necessária, o que será decidido conforme os critérios estabelecidos pelo art. 312 do CPP. O normal, pois, é que aquele que for preso em flagrante seja posto em liberdade (que é sempre a regra), salvo se presentes os elementos que autorizariam a prisão processual preventiva (que é sempre a exceção). 

Existem decisões judiciais em que, nos casos de crime inafiançável, a necessidade da prisão é relativamente presumida e que, por isso, o afastamento da prisão em flagrante, através da concessão da liberdade provisória, depende da prova, pelo preso, de que a manutenção da prisão não é necessária, contraria toda a sistemática acima mostrada. Com efeito, a regra constitucional é que os indivíduos fiquem em liberdade até que sobre eles recaia sentença condenatória transitada em julgado. Para que esse direito individual seja afastado é imperioso que exista um quadro fático a demonstrar que a prisão(processual) do indivíduo é necessária, imprescindível, inadiável, ainda que tenha sido preso em flagrante. No flagrante, o funus boni iuris via de regra está presente, sendo a própria razão desta modalidade de prisão. Todavia, nem sempre ocorre o mesmo com o periculum libertatis e, conforme se viu, a prisão processual, medida cautelar que é, demanda a presença simultânea dos dois requisitos, de modo que, ausente um, é ela incabível. 

O que se exige, portanto, é a prova da necessidade da prisão e não o contrário, ou seja, não se pode levar adiante o entendimento conforme o qual é o preso que tem que comprovar que sua prisão é descabida. É ao Estado que toca essa tarefa se quiser afastar dele seu direito individual à liberdade (que, diga-se de novo, é a regra conforme a Carta Política de 1988). Consulte-se ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO, ob. cit., p. 81. 

Presumir que o crime, por ser inafiançável, tem prisão processual autorizada até prova em contrário, é vilipendiar o princípio da presunção de inocência, mesmo para aqueles que encaram tal axioma apenas como princípio da não-culpabilidade. É inverter o sistema. Destaque-se que, nos termos do parágrafo único do art. 310, só se mantém a prisão em flagrante, negando-se a liberdade provisória, naqueles casos em que, se o preso estivesse solto, seria decretada sua preventiva. Este dispositivo, com essa interpretação, em tudo e por tudo, respeita as normas constitucionais referentes à liberdade, como aliás expressamente o admite a exposição de motivos da Lei 6.416/1977, que foi quem deu a redação atual do citado artigo. 

Manter a prisão em flagrante pelo simples fato de o crime ser inafiançável agride também os arts. 5º, LXI e 93, IX, da Carta Magna, que condicionam as decisões que retirem a liberdade dos indivíduos à escrita fundamentação. Veja-se que com relação à prisão a Constituição não se satisfez com a regra geral de que as decisões judiciais têm que ser motivadas e ascendeu à categoria de direito individual a necessidade de fundamentação das decisões constritivas da liberdade. Daí deriva que a decisão que mantém prisão em flagrante não pode simplesmente adotar como fundamentação, como entende alguns Tribunais, o fato de não ter o preso comprovado a desnecessidade da prisão ou a presunção da necessidade da prisão porque isso seria, por vias transversas, não fundamentar, na medida em que a necessidade concreta da prisão não estaria demonstrada. Neste sentido, ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO, ob. cit., p. 81 e também, do mesmo autor, "A Motivação das Decisões Penais", , São Paulo, Revista dos Tribunais, 2001, p. 226 e ss. 

A tese de alguns Tribunais, em que o ônus de provar a desnecessidade da manutenção da prisão em flagrante é do preso no caso de crimes inafiançáveis também é censurada quando se nota que o parágrafo único do art. 310 do CPP diz que a necessidade ou não da permanência do flagrante será feita à luz do "auto de prisão em flagrante". É certo que, na prática, nem sempre traz o auto os elementos necessários a que se aprecie com responsabilidade se a necessidade da prisão se faz ou não presente. Por vezes, é preciso ir em busca de outras informações, tais como a comprovação do endereço do preso (para aferir a conveniência ou não de sua liberdade para fins de instrução criminal) ou seus antecedentes (para analisar questões relativas à garantia da ordem pública). Todavia, precisar a autoridade judiciária de outros documentos para melhor apreciar se concede ou não a liberdade provisória não quer dizer, em absoluto, que o ônus de comprovar a desnecessidade da prisão é daquele que foi preso em flagrante. É exatamente o contrário. É o Estado-juiz que precisa destes elementos para decidir, de forma constitucionalmente fundamentada, se a liberdade do preso deve continuar sendo afastada, já que é esta que é um direito fundamental (assim como a liberdade provisória). Consiga-os ou não, somente se comprovada a necessidade da prisão deve ser ela mantida, sob pena de constrangimento ilegal. E comprovar a necessidade não é o mesmo que não comprovar a desnecessidade. Rememore-se que a imposição da prisão em flagrante apenas traz o fumus boni iuris, exigindo-se, ainda, para que se tenha uma prisão processual regularmente aplicada, o periculum libertatis, a ser demonstrado pelo Juiz através de decisão motivada. 

Acresça-se, para afastar a presunção de necessidade da prisão adotada por alguns Tribunais, que para remediar uma prisão em flagrante que não deveria ter sido afastada sempre se poderá decretar a prisão preventiva. O contrário também é possível, mas se terá solapado direitos fundamentais os mais relevantes. 

Assim, em conclusão, chama-se a atenção para acórdãos como o que aqui se tentou analisar. Se, na espécie,  era ou não caso de se manter a prisão em flagrante não há como se dizer sem a consulta aos autos. Todavia, nada impede que se traga à discussão as questões jurídicas subjacentes ao que ficou decidido (e este foi o objetivo deste artigo) no afã de exortar Advogados, Magistrados, e membros do Ministério Público para uma maior observância dos direitos fundamentais. É que a teoria divorciada da prática é falha, é imperfeita, daí resultando que aos operadores do direito cabe a realização de esforços para trazer para a prática aquilo que a Constituição fez questão de assegurar, sem o que não se chegará a um verdadeiro e concreto Estado Democrático e Social de Direito.

BIBLIOGRAFIA

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